"Irmã coragem"


Ela era magnética, inteligente, tinha do bom e do melhor. Os garotos babavam, as meninas queriam imitá-la. Até que a paraibana Samara, 14 anos, descobriu a cocaína. E então o crack. E então a prisão. E então a prostituição para pagar a droga. Por fim, Samara conheceu a morte. A pedradas. Tinha 28 anos. Aqui, sua irmã Mariah Araújo relembra a trajetória da garota “que sorria da maneira mais gostosa que já ouvi alguém sorrir”



Mariah, a corajosa convidada que deu este depoimento emocionante (Foto: Jonathan Wolpert)

“Passei minha infância em João Pessoa, na Paraíba, onde nasci. Ô lugar bom de viver. Tenho as mais lindas lembranças dessa terra – há poucos meses me mudei para Recife. Mas voltando no tempo...Eu e minhas duas irmãs (Nattascha, a mais velha, Samara e eu, a caçula) sempre tivemos tudo do bom e do melhor. Estudamos nos melhores colégios, moramos no bairro nobre da cidade e crescemos cercadas de carinho. Sério mesmo: vida suave e feliz. Fecho os olhos e me lembro da gente correndo pelo parque, jogando bola na praia, virando a madrugada no videogame...Juntas, sempre juntas! As três melhores amigas. Samara sempre foi a mais inteligente. E, além disso, linda e magnética, sabe como? Deixava os garotos apaixonados, e as meninas – como eu! – querendo imitá-la. Também tirava as melhores notas. Sabia tudo de tudo. Adorava ler, era fã de música e cinema. Nós duas passávamos hoooras na locadora decidindo qual filme alugar. Como eu queria que apenas esses momentos estivessem gravados na minha memória. Mas não...



Eu tinha 12 anos quando o pesadelo da nossa família começou. Estava dormindo e acordei com um barulho bem alto. Alguém levou um belo tombo no andar de cima, pensei comigo. Minutos depois, um som agudo de sirene vindo da rua. Levantei correndo. Dei de cara com meu pai na sala, desesperado ao saber que era a Samara quem a ambulância tinha vindo pegar. Minha irmã, que tinha 14 anos, havia se jogado da varanda do 4º andar, do apartamento de um amigo que morava no mesmo prédio que a gente. Você pode imaginar o tamanho do nosso choque? Ficamos tentando entender o que tinha acontecido de verdade. Jesus, como ela tinha caído? Tinha escorregado? Alguém tinha feito algo contra ela? Que angústia! Já no hospital, foi a própria Samara – que, sim, sobrevivera – quem nos deu a resposta: estava “tão louca” que achou que podia voar e se jogou. Foi assim, da pior forma possível, que descobrimos que ela usava drogas. Começou como a maioria das pessoas: um baseado aqui, um “doce” ali, uma “bala” para aproveitar melhor a festa, mas logo descobriu a cocaína. E viciou.

Nattascha, Samara e Mariah quando tudo ia bem (Foto: Arquivo Pessoal)




E então ela sumiu
Nem mesmo o acidente, que a deixou sem andar por três meses, fez com que parasse. Pelo contrário: coisas de valor começaram a desaparecer de casa. Joias, eletrodomésticos, o carro...Em casa era uma tristeza só. O clima era de enterro. A descoberta e o agravamento do problema deixaram todo mundo em choque. Meus pais não sabiam como agir, tentaram conversar, colocar de castigo, convencê-la a se internar. Só que ela estava sem freios, afundando cada vez mais rápido. E, então, ela sumiu. Saiu e não voltou mais. Fomos à polícia, registramos BO, mas simplesmente ninguém a encontrava. Cada vez que o telefone tocava, era um desespero. Meu pai ficava atento aos programas policiais, eu perguntava dela para todos... Vivíamos com o coração na boca, em constante estado de alerta.


Um belo dia, um ano depois do sumiço, uma mulher bateu à nossa porta: magra, desgrenhada, vestindo trapos e com uma cara exausta. Um misto de medo e raiva tomou conta de mim quando percebi que era a Samara. Choramos, brigamos e nos entendemos. Tive vergonha de perguntar o que ela fez, por onde andou...Ela prometeu que ia mudar. Minha irmã finalmente aceitou ir para uma clínica de reabilitação. Não conseguíamos nem comemorar. Ao primeiro sinal de melhora, Samara desapareceu novamente. E isso aconteceu algumas vezes. Ela voltava, dizia que queria virar o jogo, era internada, melhorava e fugia, sem conseguir viver longe das drogas. Um pesadelo. Tentei ser amiga dela, entendê-la, não julgar...mas talvez eu não seja evoluída a esse ponto. Ver meus pais destruídos por causa dela me doía demais.

Procurando manchetes trágicas nos jornais
Quando eu estava com 20 anos, já perto de me formar em jornalismo, Samara (com 22) voltou ao nosso convívio. Chegou do nada, pra nossa surpresa. Estava morando com um rapaz, feliz, cheia de esperança. Na época, minha irmã Nattascha estava de casamento marcado, só que Samara acabou engravidando e casou um dia antes dela. Um bebezinho lindo nasceu no Natal: Maximus, o amor da minha vida. Por três anos, tudo estava incrivelmente bem. Até que ela e o marido conheceram o crack. Fui visitá-la uma vez e fiquei em choque com a casa em que moravam. Não havia um móvel sequer. A essa altura meus pais já lutavam pela guarda do Maximus, e ele foi morar com a gente. Um menino tão lindo, mas com um olhar tão triste. Samara sumiu novamente e nossas vidas voltaram ao padrão “procurar manchetes trágicas nos jornais”. Como sempre tivemos uma ligação especial, ela chegou a me ligar a cobrar algumas vezes me pedindo comida e dinheiro para pagar dívidas de drogas. Numa dessas ligações, confessou que estava se prostituindo para sobreviver.



Meu chão se abriu. Meu Deus, isso era o mais baixo que um ser humano poderia chegar, não? Eu pirei, meio que entrei num buraco junto com ela. Sentia muita vergonha de tentar ser feliz. Não conseguia curtir nenhuma festa ou comemorar uma meta profissional alcançada. A culpa por minha irmã estar naquele estado e eu nada poder fazer me sufocava. Meu pai só me contou depois, mas durante esse período chegou a levar dinheiro para um traficante que a acorrentou ao pé da cama até que a dívida fosse paga. Ele a levou para casa nos braços e até hoje não sei como suportou ver a menina dele assim...

Samara e o filho Maximus na clínica de reabilitação, em 2009 (Foto: Arquivo Pessoal)


O crack detonou seu corpo
E quando a gente pensava que nada poderia piorar, descobrimos que Samara estava grávida novamente. Ela simplesmente apareceu em casa na reta final da gestação. Tirando a barriga, ela era só pele e osso! O crack detonou seu corpo. Claro que ela havia se drogado durante toda a gravidez. Num desses milagres inexplicáveis da vida, o bebê nasceu saudável. Era outro menino, que batizamos de Hércules. Quando ele ainda era um recém-nascido, Samara fugiu e foi presa num lugar conhecido como cracolândia. Minha tia, irmã da minha mãe, se ofereceu para cuidar do Hércules. Eu nunca fui ao presídio. Ela ficou lá por 20 dias e me telefonava de números diferentes, pedia créditos de celular. Gritava muito, dizia que ia ser morta. Algumas presas também me telefonavam, ameaçando nossa família.

Paralelamente meus pais conseguiram um defensor público para lutar pela soltura dela. Uma vez solta, conseguimos interna-la na ala para dependes químicos de um hospício. Foi horrível, passei a não reconhecê-la mais – bem, um pouco mais. Então tive um estalo: chega, vou viver a minha vida, vou é tratar de ser feliz. Tinha 24 anos, poxa. Vivia aquele inferno desde os meus 12! Então me afastei dela. E conheci o Tito. Foi amor à primeira vista. Começamos a namorar e nos casamos no ano passado. Ele é o homem mais carinhoso e companheiro do mundo.

Até que eu achei a manchete que tanto procurei
31 de dezembro de 2011. Eu, Tito, Maximus, Nattascha e o filinho dela tínhamos passado um dia perfeito na praia. Voltamos pra casa cheios de planos para o ano-novo. Chegando, liguei o computador. E então aconteceu. Li a manchete que sempre temi encontrar: “Mulher é encontrada morta a pedradas no bairro São José”. Reconheci a minha calça jeans na foto. Liguei para o legista (por ser jornalista, tinha esses contatos) e pedi para ele procurar por uma tatuagem no corpo. Ele achou. Era ela. Minha irmã estava morta. Morta a pedradas. Que triste fim para uma vida tão triste. Não fui ao velório nem ao enterro. Não queria vê-la desfigurada aos 28 anos de idade.

Até hoje a polícia não encontrou os culpados pela morte da Samara. Às vezes, meu coração se enche de uma tristeza indescritível, do tamanho do mundo. Autopiedade, pena dela, pena dos meus pais, dos dois filhos que ela deixou. Meu único conforto é pensar que minha história contada aqui pode ajudar as pessoas a procurarem uma vida longe das drogas. Dessa história toda, restaram dois tesouros, dois pequenos e lindos milagres: Maximus, hoje com 9 anos, e Hércules, com 5. Consigo enxergar muito dela neles! A gente sempre fala da Samara com muito amor para os meninos. Sempre que posso, conto da nossa infância, daquela menina linda que corria comigo pelo parque, que me ensinou a andar de bicicleta, que roubava meus paqueras, que sorria da maneira mais gostosa que já ouvi alguém sorrir.

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